Arquitato

Quarteira, 30 de Agosto de 2023

Costumo dizer em tom de brincadeira, principalmente aos mais chegados, que sofro de amnésia crónica. Acrescento a palavra crónica no final para dar um ar de patologia, ao invés de um opaco eclipse do lembrar. Como se na hipérbole humorística, pior significasse melhor. O contexto é quase sempre o mesmo. Quando alguém me pergunta se me lembro de um outro alguém dos tempos da nossa infância, com descrições e detalhes que para quem descreve são únicos, mas para quem ouve são universais. Se escrevesse uma crónica intitulada As Memórias da Memória do meu iPhone, tenho a certeza que lá encontraria mais informações do que na minha. A começar pelos nomes completos na lista de contatos.

De regresso a Portugal, tenho pensado noutro significado dessa mesma palavra. Contato. Relação de comunicação e de proximidade. Convívio. Estado dos corpos que tocam uns nos outros. Contiguidade. São algumas das definições segundo o dicionário da língua portuguesa. A meu ver, contato quase poderia ser o antónimo de distância. Se assim fosse, estabelecer contato em afastamento seria um doce paradoxo de ilusão. Será de fato possível contatar inteiramente sem envolver o tato? Fazê-mo-lo diariamente. Mas no íntimo, sabemos que não é diferente de se ler uma sinopse e achar que já se conhece um livro por inteiro.

Será de fato possível contatar inteiramente sem envolver o tato?

Ultimamente voltei a fazer da leitura um hábito. Para além de roupa e material fotográfico, livros foram das poucas coisas que fiz questão de trazer de volta comigo. O mais recente que li foi “Budapeste”, de Chico Buarque de Hollanda, onde o personagem principal é um ghost-writer nascido no Rio de Janeiro, que vive entre o Brasil e a Hungria. A sua transformação ao longo da trama é cumulativa, acompanhando não só a própria relocalização geográfica, mas também a interação com os demais personagens, principalmente relações amorosas. Aprendeu a falar húngaro, e, neste idioma – “que segundo boatos é a única língua do mundo que o diabo respeita” – realizou a transição da escrita em prosa para a escrita poética.

Algum tempo após ler este livro, deparei-me com o conceito de construcionismo social. Segundo esta perspectiva, o conhecimento humano só pode ser concebido contextualmente, ou seja, é algo construído no coletivo. Uma criação social que deriva exclusivamente da interação entre nós e o outro. O protagonista de Budapeste é claramente um construcionista. E quero acreditar que o génio de Chico desenhou a viagem literária do escritor carioca tendo tudo isto em mente.

Ainda segundo o entendimento construcionista, a nossa mais importante manifestação interacional é a linguagem. O que faz todo o sentido, se pensarmos na maneira como o conhecimento progride de geração em geração. Uma espécie de inteligência colaborativa. Acho notável, por exemplo, que estudos recentes afirmem que aprender uma nova língua pode mudar as ligações no nosso cérebro e até o nosso comportamento. Sempre que aprendemos uma nova maneira de comunicar, estamos a trabalhar a nossa mais importante ferramenta de manifestação de conhecimento.

Observando a minha própria cronologia, pergunto-me se aprender alemão e experienciar uma cultura distinta foram desbloqueios que necessitava para poder aceder a outras práticas. Curiosamente, foi nessa mesma altura em que comecei a demonstrar interesse pela linguagem visual da fotografia. Estava convencido de que comprara a minha primeira máquina exclusivamente para captar as sublimes paisagens suíças, mas talvez existam outros motivos de caráter neurológico por trás desse desejo presumivelmente casual.

Casual ou causal, a verdade é que cada um aprende e constrói de maneira singular. Com recurso a diferentes dialetos de expressão. Mas como seres sociais que somos, por mais que alguns apreciem o silêncio da sua própria individualidade, procuramos invariavelmente calor na proximidade do tocar. Será a aquisição de conhecimento uma das funções mais negligenciadas do nosso sentido de tato? Enquanto pensamos na resposta, continuamos à procura de experiências palpáveis, arquitateando no escuro um novo edifício mental.

Continuamos à procura de experiências palpáveis, arquitateando no escuro um novo edifício mental.

Construir é necessário. E se for para construir, que o tamanho do empreendimento não seja limitado pela pequenez dos nossos pensamentos negativos. Arranhar o céu como limite e, ao mesmo tempo, ter a humildade para tatuar paciência no corpo de um processo em movimento. Nas escalas da vida, se pensarmos grande, no mínimo alcançamos algo médio, e se pensarmos pequeno, no máximo alcançamos algo mínimo.

Contatar é imperativo. Se a força daquilo que penso impulsiona-me na direção de pessoas que vibram na mesma frequência, o próprio ato social pode ser considerado uma válida forma de progresso. Com sabedoria particular transposta para o campo coletivo. Semear relações, regá-las, nutri-las. Quando o mundo de quem me rodeia se expande, eu também dilato. Uma espiral de crescimento comum.

Quando o mundo de quem me rodeia se expande, eu também dilato.

Manter o contato é fortalecer a fundação de uma moradia, para quem entende que qualquer língua pode ser a sua casa, desde que estejamos rodeados de bons vizinhos. Tal como escreveu Agualusa, casa não é o lugar onde estão as pessoas que amamos, casa é o lugar onde não precisamos explicar quem somos. Apenas somos.

Avatar de Anderson

Ao subscreveres com o teu endereço de email no campo acima receberás uma notificação assim que a próxima crónica for publicada.