90 segundos num minuto

Zurique, 1 de Maio de 2023

Recentemente vi uma entrevista do comediante Dave Chappelle no programa CBS This Morning. A entrevista já deve ter alguns 4 ou 5 anos, mas a história contada por este, que muitos consideram ser o melhor comediante de todos os tempos, é atemporal. Num determinado momento da conversa, a apresentadora Gayle King aborda o fato do mesmo ter-se recusado a produzir a terceira temporada do seu programa “Chappelle’s Show”, após o inquestionável sucesso mundial da primeira e da segunda.

Ao fazê-lo, o comediante declinou simultaneamente um contrato no valor de 50 milhões de dólares. A sua resposta ao comentário de Ms. King foi a seguinte:

“Há pouco tempo, vi um daqueles programas de televisão sobre a natureza e reparei numa coisa interessante. A maneira como os Bushmen encontram água durante o período das secas. Eles fazem um pequeno buraco na terra onde colocam pedaços de sal. O buraco é feito estrategicamente para que a mão curiosa de um babuíno caiba ao entrar, mas, uma vez cheia, não consiga sair. Quando o Bushman vê que a armadilha funciona, o animal tem duas opções: largar o sal e fugir, ou, ser apanhado. Só que os babuínos adoram sal, por isso não abrem mão da iguaria – literalmente. O Bushman coloca-o então numa jaula onde o presenteia com mais um banquete salino. Quando a sede do macaco começa a apertar, o homem liberta-o apenas para segui-lo, sabendo que este irá dirigir-se à fonte de água mais próxima, onde ambos irão beber para saciar a sua sede. Nesta analogia, eu sou o babuíno. Só que tive coragem de largar o sal.”

Quando ouvi esta estória, associei-a a uma frase que diz o seguinte: “Se diminuirmos a quantidade de coisas que desejamos, podemos ter tudo aquilo que quisermos.” Parece uma ideia simples ou até contraditória. Mas é um pensamento disruptivo para todos nós que acreditamos possuir bens materiais, não entendendo que, na realidade, nós é que acabamos por pertencer às “nossas” posses.

Se diminuirmos a quantidade de coisas que desejamos, podemos ter tudo aquilo que quisermos.

A capacidade de trabalhar o desapego deveria ser proporcional ao tamanho do nosso desejo. Quanto mais quiséssemos algo, mais deveríamos estar dispostos a renunciar. Mesmo que a desaceitação nunca chegue a acontecer, a capacidade de abdicar deveria ser exercitada. Caso não o façamos, quando o desejo convertido em posse se dissolve, o nosso vórtice existencial corre o risco de ascender ao cume da sua turbulência. Estatuto, carreira e relações também são possíveis manifestações de sentimento de posse, e, por sua vez, desejo.

Porém, o equilíbrio é indispensável para vivermos de maneira estável numa sociedade desenhada para alimentar o apetite do consumo. Precisamos de uma certa sobriedade prática para melhor poder refletir sobre a nossa individualidade, que acaba por ser prisioneira de um sistema social coletivo.

Retratação hipotética. Depois de uma boa noite de sono, num dia qualquer da semana, acordamos sem saber onde estamos. Passados alguns momentos de confusão entendemos que estamos num barco. Não sabemos o porquê de estar ali, nem exatamente onde nos encontramos para além do visualmente óbvio. Rodeados de água e sem terra à vista. Seria perfeitamente natural fazer no mínimo 3 perguntas. Como viemos parar aqui? Onde estamos? E para onde vamos?

A aleatoriedade da nossa existência assemelha-se, de certo modo, a diversas incompreensíveis viagens de barco, mas por algum motivo, não nos damos ao trabalho de colocar todas as questões essenciais a cada ida. Por vezes, deixamo-nos apenas levar pela corrente ficando à deriva, quando a simples procura pelo norte já seria suficiente para fazer pequenas correções de rota, evitando assim, quem sabe, um potencial afundamento. No entanto, assim como a chapada de uma adversidade pode ser encarada como uma nova oportunidade, o naufrágio de um barco que segue na direção errada pode ser entendido como um verdadeiro milagre. Tudo depende do ponto de vista.

Estas correções de rota são como pequenos soluços de prazer que integramos no nosso cotidiano. Que pequenos hábitos me mantêm focado no presente? Que atividades me fazem sentir como se coubessem 90 segundos num minuto? Uma integração reprimida destes pequenos soluços de prazer será possivelmente mãe de duas novas necessidades: uma nova bússola, um novo norte.

Que atividades me fazem sentir como se coubessem 90 segundos num minuto?

Mudar é difícil, então criamos aversão à mudança. Preferimos contar a nós próprios uma versão confortável da nossa história para podermos justificar as nossas escolhas. No entanto, o caminho mais fácil é o mais difícil. E o caminho mais difícil evolui no sentido de se revelar mais fácil. Ser a favor de contrariedades controladas. Quem só evita obstáculos, não aprende. Quem não aprende, não evolui. Preferes adormecer no berço da tua segurança ou caminhar no precipício do aprendizado?

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