Hábitos do habitat

Quarteira, 16 de Junho de 2022

Na semana passada vi um documentário sobre parques florestais narrado por Barack Obama. No primeiro episódio, o quadragésimo quarto presidente apresenta-nos, entre muitas outras espécies animais, uma preguiça de 3 dedos no Parque Nacional Manuel Antonio – floresta tropical da Costa Rica.

Uma das características mais peculiares deste mamífero em particular, é o tom esverdeado do seu pêlo e ainda o fato de nessa mesma pelagem habitarem 80 espécies diferentes de outros seres vivos – desde insetos até vários tipos de fungos. Um desses fungos possui mesmo propriedades medicinais e contribui para a produção de medicamentos que ajudam no combate a alguns tipos de cancro e à malária. A mãe Natureza em seus cuidados maternos insiste em tomar conta do filho rebelde: a criatura humana.

Esta semana dei por mim a pensar diversas vezes nessa parte do documentário. Mas não pelo motivo mais óbvio: a capacidade extraordinária que a Natureza tem em comunicar-nos claramente a importância da sua preservação. Identifiquei-me foi com o desinteresse e entorpecimento daquele apático preguiçoso de três dedos pois foi assim que me senti quando testei positivo para a COVID-19. Eu tranquilo no meu lento ritmo, o resto do mundo é que parece que “obikwela”.

Eu tranquilo no meu lento ritmo, o resto do mundo é que parece que “obikwela”.

Passo rastejante e letargia como se ambas as mãos conseguissem agarrar ambos os pés enquanto caminho em ambas as direções. Às vezes vou, imbuído de uma leve sensação de ainda estar a regressar. Talvez nem tenha deixado aquele espaço. Fui em pensamento.

Lassidão e solidão dialogam numa palestra a dois cujo único propósito é certificar-se de que nenhuma conclusão seja declarada. Eu, espectador passivo de um debate deprimido, observo. Apenas muitas horas passadas, reparei que não éramos só três naquele quarto. No canto do lado escuro da sombra, de pernas cruzadas e cigarro na mão, ela também fincava presença: a procrastinação. A julgar pela multidão de beatas no cinzeiro, dava a entender que sempre lá esteve, numa silenciosa e autoritária aparição.

A sede já vivia mais em mim do que eu nela. Aconchegou-se a mim como um vizinho íntimo que já não se anuncia nem bate à porta. Vê-la esparramada no sofá da minha zona de conforto tornou-se lei. Sei que toda a regra é feita de material quebradiço e maleável, mas esta fez-se imperatriz. Cada gota, cada prescrição. Sorver e absorver com a ambição de uma esponja raquítica. Afinal éramos cinco.

A sede aconchegou-se a mim como um vizinho íntimo que já não se anuncia nem bate à porta. Vê-la esparramada no sofá da minha zona de conforto tornou-se lei.

O meu termómetro marcava 38.8 graus de febre quando decidi assistir os restantes episódios do documentário. Lá fora era meio de Junho e a temperatura máxima estava próxima dos 25 graus. Ventos impróprios assobiavam em uníssono, modulando uma desafinada harmonia no epílogo do dia.

Bem sei que qualquer tipo de reflexão sobre a COVID-19 em Junho de 2022 será lida ou ouvida com algum descaso. O sentimento geral regente sussurra-nos ao ouvido que o medo que nos congelava agora não passa de neve derretida. Acho que em 2025, COVID-19 vai soar a anos 90 para quem foi de vinte vinte (2020). O único senão é que, a julgar pela maneira como nos relacionamos com os nossos ecossistemas, esta provavelmente não será a última pandemia dos tempos imediatos.

Acho que em 2025, COVID-19 vai soar a anos 90 para quem foi de vinte vinte.

Uma filmagem aérea revela-nos um mapa de estradas desenhado por pegadas de elefantes aquando das suas eternas caminhadas na busca por água. Vislumbramos o Parque Nacional do Tsavo, no Quênia. A memória invejável da manada guia-os até ao local onde conseguiram encontrar a fonte da existência nos anos anteriores. Nesta terra de terra vermelha e árida, os elefantes são os verdadeiros reis da selva.

Duas imagens sobrepostas evidenciam semelhanças de dois ângulos muito diferentes. O plano aéreo daquela complexa estrutura de rodovias e o grande plano abstrato da pele áspera e rígida dos corpulentos seres. Encaixam quase na perfeição.

Comecei a imaginar como seria se a preguiça da Costa Rica tivesse que se adaptar à rapidez da savana do continente mãe. Ou se um daqueles leões quenianos também demorasse um mês para digerir uma folha por causa de um metabolismo que funciona em câmera lenta. Mudanças de habitat manifestam mudanças de hábitos. E todos nós acabamos por ser reféns dos hábitos do local em que habitamos.

Mudanças de habitat manifestam mudanças de hábitos. E todos nós acabamos por ser reféns dos hábitos do local em que habitamos.

Desde que foram decretados os primeiros lockdowns na Europa, temos sido invadidos por um exército de novos costumes que esquartejam as nossas rotinas e invertem o nosso cotidiano. Ao longo dos últimos dois anos e meio fomos lentamente confrontados com a previsível e inflexível realidade do nosso regresso à selva de concreto do novo normal. Da fuga da maratona de monólogos em direção a uma frenética corrida de triálogos, onde adversários buscam reconquistar um tempo que mais não volta. Muitos gostariam de, pelo menos, ainda ter essa oportunidade. Mas quem fica sempre reclama, e quem parte gostaria apenas de ainda poder reclamar. Será que regressar aos velhos hábitos lá fora é tarefa fácil sendo que nenhum de nós é mais o mesmo por dentro?

Pensamentos transeuntes. Às vezes sinto-me estranho por ser a única pessoa de máscara no transporte público. Ou por participar em eventos dentro de portas repletos de pessoas. A ambivalência romântica é real e perfeitamente diagnosticável na vida de muita gente – o famoso “fear of dating again”. Acho que todos nós sofremos de ansiedade ou algum tipo de depressão em escalas diferentes – mesmo que tenhamos decidido ignorar o elefante no meio da sala. A sobrevivência física e mental talvez passe pela nossa capacidade de adaptação aos novos hábitos do nosso velho, porém irreconhecível, habitat.

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